O olho do tamanduá – O Butoh e o rito
(*) Este texto foi escrito por Felicia Ogawa em 1996 e publicado no catálogo do espetáculo “O Olho do Tamanduá” com Cia. Tamanduá de Dança Teatro em 1997
O OLHO DO TAMANDUÁ – O Butoh e o rito
O Butoh tem hoje 37 anos (*). Nasceu no Japão de uma realidade tumultuada do pós-guerra e é considerado a expressão artística das mais imaginativas e estimulantes da cultura japonesa contemporânea que, ao longo de sua existência, vem aplicando um “soco no estômago” nos racionalistas do mundo. Sua linguagem ainda hoje se encontra em pleno processo de transformação pois se trata de uma expressão viva da arte que possui universos ainda não desvendados. É impossível imaginar o Butoh estratificado.
O Butoh é uma forma primal de dança que se origina no agora e no muito antes, sem começo, meio ou fim, onde a vida borbulha e instiga o autoconhecimento, extrapolando, assim, a força dos gestos, movimentos ou plasticidade do palco.
Em 1959, a apresentação da peça Kinjiki (Cores Proibidas), interpretada por Tatsumi Hijikata e Yoshito Ohno, baseada nos escritos de Yukio Mishima, provocou um verdadeiro escândalo e muitos membros da Associação de Dança Japonesa repudiaram o trabalho, pela violência e contestação à linguagem formal. Era um sopro de novidade que passara a dar nome a um movimento de vanguarda que, na prática, já existia num circuito muito fechado liderado por alguns artistas e escritores.
A filosofia predominante era o próprio redimensionamento do nacionalismo nas linguagens artísticas, propondo uma total liberdade e ruptura com o moralismo da época, e também com a excessiva influencia estrangeira que fazia os japoneses se distanciarem do eixo de sua própria cultura.
O crítico Fumiaki Nakamura assim se manifesta sobre a primeira fase do Butoh, a dos anos 60: “O Butoh dos anos 60 foi praticamente o rompimento com conceitos de dança. O corpo em si era o ponto central da busca. Não era um meio mas um fim em si mesmo, na transmissão da filosofia nela contida. Para Hijikata, o corpo não devia ser utilizado para transmitir idéias mas para ser questionado e recriado através da linguagem do erotismo e da violência. Nesta época, o Butoh era denominado “Dança das Trevas”.
O Butoh dos anos 70 foi considerado da época das ideologias, cujo fio divisor é marcado pelo espetáculo Nikutai no Hanran (A revolta do corpo), de Hijikata, apresentado em 1968. A linguagem do corpo foi levada ao extremo. Neste período, o Butoh passou a adotar uma forma e estilo, facilitando, assim, sua identificação pelo público. Surgiram vários grupos que acabaram se transformando em verdadeiros pilares do Butoh. A obra mais representativa dessa fase foi inegavelmente La Argentina, de Kazuo Ohno. Foi também a década em que o Butoh atravessou as fronteiras japonesas e conquistou o reconhecimento internacional até mesmo maior do que no próprio país de origem. No entanto, a contradição era latente pois, por ter adotado uma forma, passou a enfraquecer sua postura interior, seu conceito, relegando a um segundo plano a questão do corpo, justamente uma das forças que dera origem ao Butoh.
Já nos anos 90, o Butoh passou a vertentes inimaginadas, cuja mutação atingiu o nível do publico. Existe um grande interesse pelo Butoh, uma juventude que se diverte com sua linguagem mas que nem ao menos conhece ou ouviu falar em Hijikata. Nessa corrente de transformação, um dos imutáveis no mutável é Kazuo Ohno, que se preocupa em reposicionar urgentemente a linguagem do Butoh na sua origem, contrapondo-se à tendência cada vez maior de valorização da forma. Para ele, o que comove no Butoh não é a forma nem o movimento mas sim a alma nela presente.
O Butoh atravessa os mares em fins dos anos 70, para ser reconhecido e bem considerado tanto na Europa como nos Estados Unidos como uma importante linguagem artística japonesa contemporânea. Registra-se que o primeiro espetáculo de Butoh fora do Japão foi o de Carlota Ikeda e Ko Murobushi no ano de 1978, em Paris.
Observa o crítico Miyabi Ichikawa, que acompanhou de perto o processo inicial de penetração desta linguagem no mundo ocidental, que este estava sequioso em conhecer algo novo para provavelmente preencher o vazio em que se encontrava a linguagem artística ocidental de uma forma geral. A linguagem formal e racional colocava a criatividade num beco sem saída. Depararam com o Butoh no Japão. Vários grupos foram convidados a mostrar seus trabalhos no Ocidente.
Após tomar de assalto o meio artístico do Ocidente, por sua linguagem visceral, pelas formas inusitadas e pela viagem ao universo do inconsciente, o Butoh foi se enraizando no Ocidente. Passa a coexistir com a dança contemporânea, conquistando um espaço próprio como uma expressão artística japonesa contemporânea. Isto se deu pelo fato de esta linguagem ter sido percebida como algo original, verdadeiro, que não buscava explorar o japoneísmo, mas que nascia de um verdadeiro questionamento do homem contemporâneo face a suas angustias, aos problemas do viver, partindo da reflexão sobre a origem da própria vida. Buscava-se o rito da vida. Era o agorae o muito antes.
A postura criativa do Butoh passou então a influenciar os artistas do Ocidente que passaram a vislumbrar a possibilidade de redimensionamento de si mesmo enquanto criador.
No Brasil, por outro lado, o Butoh passa a ser amplamente conhecido com a vinda de Kazuo Ohno, em 1986. Antes porém, sua linguagem, sem ter sido utilizada esta terminologia, já era conhecida em meio da dança e das artes através dos trabalhos de Takao Kusuno, que chegou ao Brasil em 1977 e apresentou seu primeiro trabalho no ano seguinte, resultado de um processo criativo realizado com dançarinos brasileiros. Seu último trabalho, O Olho do Tamanduá, é considerado um espetáculo de dança Butoh brasileiro. Takao vem trabalhando com artistas brasileiros, buscando criar uma linguagem peculiar, procurando revalorizar e transformar manifestações arquetípicas de identidade corporal e do universo sensorial. Remete os olhos às raízes primordiais tanto individuais quanto da realidade em que vivem ou nascem. Este é um dos pontos básicos da linguagem Butoh.
O Olho do Tamanduá, buscou, assim, a partir da observação do universo dos índios brasileiros, o resgate da essência dos ritos para serem recriados e apresentados cenicamente. Este caminho levou necessariamente ao contato com o universo indígena. O acaso estabeleceu uma aproximação com o povo Xavante que celebrou em 1995, ocasião em que o trabalho se encontrava em processo de criação, a formatura do adolescente para o mundo após cinco anos de permanência na casa de solteiro. Uma das danças-rito é wanaridobe, em que padrinhos e madrinhas, pintados, mimetizando vários animais, vão girando com as mãos dadas, pisando forte na terra e emitindo sons corporais, da meia-noite até as 7 horas da manhã, ininterruptamente. É a dança da resistência e da superação. Se no Butoh, os elementos da dança são, segundo Hijikata, a angustia, o esgotamento e a morte, elementos não dramatizados da dança mas que apenas estão aí, para o corpo mostrar mas não para o dançarino expressar, também o são no ritual que nasce da vida em si e que é impossível aprender pela técnica.
Corporalmente, a linguagem Butoh buscou sempre como elemento essencial a força dos pés e do quadril, partes que mantêm contato direto com a terra como que para sugar a energia vital através dela. A civilização distancia cada vez mais a terra do corpo. Todo o universo se concentra na cabeça e no rosto, como pode ser observado na linguagem da TV. Mesmo no teatro se observa o aumento de espetáculos cujo apelo dramático fica dependente da fala.
No ritual dos índios, é possível recuperar o sentido da veracidade ligada à natureza: o rito nascido das necessidades do dia a dia, o rito que acontece porque é. Não é para ser mostrado.
Para saber mais:
Sites
Kazuo Ohno – www.kazuoohnodancestudio.com
Fundação Japão – www.fjsp.org.br
Tatsumi Hijikata Archive – www.art-c.keio.ac.jp/en/archive/hijikata
Livros
BAIOCCHI, M. Butoh, veredas d’alma. Palas Athena, 1995.
GREINER, C. Butô pensamento em evolução. Escrituras Editora Ltda, 1998.
Texto
OGAWA, F. M. & KUSUNO, T. A idéia do físico-corpóreo em transformação. No livro Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento. MOMMENSOHN, M. & PETRELLA, P. (orgs). Summus Editorial, 2006.
O Olho do Tamanduá
Criado por Takao Kusuno e Felicia Ogawa com a Cia. Tamanduá de Dança Teatro em 1995.
Um longo trabalho de Takao Kusuno e Felicia Ogawa, de mergulho no mundo do índio brasileiro, de busca da essência dos ritos, de viagem pelas raízes primordiais do homem. Assim nasceu O Olho do Tamanduá. Longa também fora a indagação de Felícia por suas raízes, meio-brasileira, meio-japonesa mas também nem brasileira, nem japonesa, uma inquietação que tomara desde os idos dos anos 70 e, quem sabe, traduzida pelo O Olho do Tamanduá.
Felicia partiu. Hoje ela nos assiste de camarote nas paragens onde se encontra e ouço de sua boca os ecos das palavras de Kazuo Ohno: a dança (butoh) percorre a memória da gênese da vida e revive a experiência da vida onde vida e morte coexistem. A vida só se desenvolve neste binômio vida e morte, a dança transcende este binômio e cultiva a vida. O Butoh é o aprendizado do espírito.
O Olho do Tamanduá, rito da vida. Olhos de Felícia que agora vive a vida.
Tae Suzuki
Diretora do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo em 1997.
Ficha técnica
Concepção e direção geral: Takao Kusuno
Coordenação de arte: Felícia M. Ogawa
Elenco: Dorothy Lenner, Emilie Sugai, Eros Leme, José Maria Carvalho, Marco Xavier, Patricia Noronha, Siridiwê Xavante
Iluminação: conceito – Takao Kusuno; desenho de luz – Abel Kopanski
Som: conceito – Takao Kusuno e Felícia M. Ogawa; desenho de som: Eduardo Queiroz e Raul Teixeira
Cenotécnico – Elias Ferreira