Sáfara – Marina Marcondes Machado
No ano de 1992 conheci no meu local de trabalho, que era a Escola Municipal de Iniciação Artística de São Paulo (EMIA-SP), uma moça bastante tímida mas alegre e leve com seu cabelo cortado chanel, que chegou ali para ensinar dança para crianças. Logo nos juntamos, fizemos coisas junto, a Escola permitia um tipo de flexibilidade para professores proporem coisas nas reuniões e fora delas, jogos e brincadeiras que traduziam as metodologias de cada um.
Minha amiga era dançarina e disse se eu queria vê-la em um espetáculo em cartaz no Teatro João Caetano.
O que aconteceu depois disso foi de uma densidade inimaginável.
Aquela minha nova amiga japonesinha de cabelo chanel, tímida, alegre e leve, transformava-se no palco em uma performer exuberante, velha de dar medo, densa e cheia de mistérios muito próximos dos animais. Demorei para entender – se é que se tratava de compreensão reflexiva, de pensamento – fui portanto ao camarim em estado de choque, e não sabia como dizer a ela o que tinha acontecido comigo como espectadora: apenas chorei, tremendo um pouco de medo.
Daquele dia em diante me tornei fã de carteirinha da dança butoh, e tive bastante dificuldade em gostar novamente da “outra dança” (coreografada, previsível, harmônica, etc). Percebi ao longo do tempo a contemporaneidade daquilo tudo, um tipo de arte que não deixava de lado a ancestralidade do corpo e da história da humanidade! Percebi como três mulheres podiam se transformar em galinhas, botar ovos pela boca, e ainda permanecerem mulheres comuns na saída do teatro. E principalmente percebi a potencialidade de “outro espaço” dado/criado pela cenografia daquele inesquecível acontecimento, “Sáfara”, dirigido por Denilto Gomes: toneladas de alfafa que preenchiam com cheiro e volume a parede do fundo de um palco vazio.
Fico feliz de ter conhecido, no início da década de 1990 e me tornado admiradora, amiga e testemunha da carreira da dançarina-performer Emilie Sugai: era esse o nome da japonesinha “comum” capaz de tal transformação incomum, aparentemente partindo do nada; mistérios da apropriação não de uma mágica mas de uma técnica corporal que nos faz ver o invisível, ouvir o inaudível, tocar o intocável campo de criação da estética butoh, cujo modo de andar nos leva para outros lugares, tão perto e tão longe. Obrigada, Emilie, por existir neste mundo.
Marina Marcondes Machado
(Vinte anos depois daquele acontecimento iniciático)
pesquisadora independente das relações entre teatro e infância e criadora do site www.agachamento.com