O Poço Da Mulher Falcão – Emilie E Toshi Foto Danilo Cava2

Ver as coisas que somem – Leo Lama

No começo da pandemia uma das práticas que me acalmaram foi ficar assistindo vídeos da Emilie Sugai. Os temas pelos quais ela se interessa, também me interessam. Vê-la dançar, atuar, ainda que nos vídeos, foi o que me encheu de esperança naqueles dias. Então, ontem, finalmente consegui ir assistir à peça “O Poço da Mulher-Falcão”, baseada na obra de W. B. Yeats. Fui alegre e jovial, cheio de boas expectativas, também porque no coro está Drielly Moyano, pessoa que idolatro. Cheguei cedo, passei na livraria Martins Fontes, comprei um livro, a leveza me dominava, mas quando fui comer algo, percebi que meu cartão do banco tinha sumido. Procurei nos bolsos, vasculhei a livraria, refiz caminhos e nada. Envelheci novamente. Estava agora na sala do CPT, tenso, ansioso, tentando bloquear o cartão e essas mundanices. Pensei em ir embora, com medo de não conseguir me desbloquear, mas a peça acaba hoje, quinta-feira, e está lotando. Eis a luta interna. Tolo, mais uma vez, pensei estar de posse da segurança e controle. Assim, a Muler-Falcão que me habita roubou minha ilusão de facilidade e me jogou na experiência. Começou a peça e senti que era de mim que a fábula falava. Percebi que era preciso estar na sombra para enxergar as sombras que aquela dança evoca. E, sei, é no Invisível que está o que é para ver. E surgem os sons, os pios, os vultos, as coreografias impalpáveis do coro voador. As mãos são pássaros e não representações de pássaros. Toshi Tanaka é meu velho ideal, pés firmes no chão, joelhos dobrados em força vital, voz poderosa, expressão de vida vivida. Emilie Sugai está possuída por esses animais voadores. Ela é Mulher e Falcão e também incontáveis imagens e formas que seu corpo produz. Queria que minha alma fosse como o corpo dela, que tem alma cheia de Butoh, de Nô, de Zen, de elegância, charme sutil, algo misterioso e obscuro. A peça é uma obra-prima do que se propõe. A iluminação de Fabio Mazzoni é a própria Beleza, sem exibicionismo, absolutamente evocativa. No palco, vi, a imortalidade é alcançada no gesto perfeito que vai sumir para sempre. E meu cartão não existe mais. Sinto. (14/12/2023).

Leo Lama

Diretor teatral

Foto: Danilo Cava