Emilie Sugai

A idéia do físico-corpóreo em transformação (*)

Felicia Megumi Ogawa e Takao Kusuno

A dança é um ato expressivo em que o corpo é o principal e o único veículo de transmissão de idéias e sentimentos. O corpo humano, assim como todos dos outros seres vivos do universo, está sujeito às limitações impostas pelas leis naturais, das quais o dançarino fica à mercê, quando se pensa nele como uma entidade física.

A fisiologia, portanto, é um empecilho para que o dançarino expresse livremente idéias e imagens que nascem em seu coração. Refletir sobre essa questão, buscando transgredir e superar essas limitações, é tarefa do dançarino em seu ato criativo.

Gostaríamos de pensar nessa questão independentemente do processo histórico da dança que se desenrolou até hoje.

O ser humano traz implícito em si o conceito de individualidade marcada e dominada pela existência do ego. Pensamos que quando o dançarino se propõe a transformar-se em outro ser que não seja o humano ele pode vislumbrar a superação das partes dessa limitação. Nesse caso, o ato de transformação para o dançarino não deve ser resultado de técnicas de interpretação, mas de seu esforço de transformar-se no outro escolhido por sua imaginação. É justamente esse esforço que o torna possível a metamorfose do corpo.

Para atingir o estado de metamorfose é necessário que o dançarino tenha o domínio de uma técnica corpóreo-física que torne possível o poder de automanipulação. É fundamental que ele consiga estabelecer uma visão distanciada de si mesmo, ou seja, objetiva. Trata-se da ação de recriar a existência de si mesmo, fora do próprio corpo, que consequentemente poderá ampliar a idéia de si mesmo.

Essa consciência corporal, ou seja, a visão objetiva de si mesmo e o esforço para se transformar no outro imaginado, implica a anulação de si mesmo, criando-se assim a visão objetiva de si mesmo. Descarta-se o ego para se transformar no outro. E para buscar essa possibilidade é necessário aguçar a própria percepção para observar nos menores detalhes a organicidade do outro escolhido.

O ser humano, os seres vivos em geral, as matérias inorgânicas e orgânicas, os fenômenos sociais e os fenômenos do universo podem tornar-se o objeto-alvo. É necessário observá-lo, analisá-lo nos seus pormenores para compreender e captar seus mecanismos interiores. Nesse processo de observação, é importante perceber e sentir as reações do próprio corpo, que está ligado a alguma ação real; como conseqüência dessa percepção, a manipulação do próprio corpo pode acontecer.

O CORPO NO COTIDIANO E NA DANÇA

Se considerarmos o corpo no cotidiano como um germe da expressão de dança, pela percepção do que ocorre nele, passa a ser possível apreender ser mecanismo de funcionamento. Podemos tomar como exemplo a ação do dia-a-dia. A tentativa de captar e sentir as diversas reações que ocorrem no corpo- do momento do despertar até o do adormecer -, o esforço de fazê-lo experimentar as reações ocorridas espontaneamente da primeira vez e a repetição desse esforço fazem aparecer um novo corpo expressivo, ou seja, nasce o corpo de dança. Ao passo que se essa ação for transformada em imagens possivelmente surgirão novas idéias e linguagens, assim como meios para a criação de novos trabalhos. Como conseqüência do total dos elementos levantados, o dançarino se aproxima do ponto central do corpo à medida que se expande, tornando viável um espaço corpóreo em espiral.

EXPRESSAR-SE NO ESPAÇO COTIDIANO

Expressar-se no plano do cotidiano sem um espaço codificado faz o corpo estremecer e provoca a vontade de “querer desaparecer”, a qual faz a emoção encontrar o próprio corpo.

A dor desperta pela primeira vez a consciência da existência das partes afetadas pela dor. Igualmente a impossibilidade de realizar movimentos naturais faz perceber a existência do mecanismo do movimento. Por exemplo: a impossibilidade de movimentar os dedos livremente traz a consciência do mecanismo perdido.

Desses inúmeros encontros do cotidiano nasce o olhar que focaliza o próprio corpo, ficando este distante ou muito próximo, dependendo de como se posiciona essa imagem. O corpo pode ainda se ampliar no espaço e transgredir os limites naturais.

As experiências, os fenômenos e as sensações que ocorrem no corpo do dançarino – e, também, a anulação do corpo e a observação profunda de alguma imagem – tornam possível atingir o físico-corpóreo, que se torna um corpo em metamorfose.

CORPO: ESPAÇO E TRANSFORMAÇÃO

Se considerarmos a dança a criação do espaço, as ações de andar e levantar tornam-se o ponto central do espaço, ao passo que sua existência é um fato absoluto.

A idéia de levantar-se, nesse caso, é uma reação à impossibilidade de se levantar. Trata-se de um corpo sem condições fisiológicas de fazê-lo, mas que o está tentando fazer com todas as forças. Assim, mais do que a ação em si mesmo em relação à ação de andar, temos uma imagem corporal. O início da ação de andar é resultado e conseqüência da perda momentânea do equilíbrio. Opõe-se, portanto, à idéia da ação de caminhar com uma meta definida e previamente intuída.

Em relação à postura do corpo, trata-se de estar fisicamente em pé com a energia natural, de forma relaxada mas ao mesmo tempo com todos os poros atentos à espiritualidade. Essa postura, em japonês, é denominada kamae, palavra que deriva do verbo kamaeru, que significa “estar preparado, estar alerta”. A base física dessa postura é o joelho ligeiramente flexionado, o centro da gravidade colocado no quadril, o corpo estável, firme e natural. E este tem interiorizada em si a possibilidade de externar o universo espiritual.

Essa postura também requer um joelho que possa ser livremente manipulado com o peso natural do corpo, relaxado, sem nenhuma tensão, a ponto de ignorar a existência das articulações. O corpo deve ficar suspenso como uma marionete, sem que se percebam suas angulosidades, parecendo que lhe arrancaram os músculos e até mesmo os órgãos internos: uma figura em pé cujo ventre está prenhe de espaço. Isso significa que se trata de um corpo que tem a possibilidade de se levantar, de estar pendurado e também de se desmontar.

A relação entre a ação de se levantar e a de andar começa a partir de então.

A ação de caminhar, considerada o deslocamento no espaço, tem em sua base a diferença fundamental em relação ao ato de caminhar do cotidiano. Este é o resultado da dúvida que nasce quando é dado o primeiro passo e surgem as questões “para onde” e “de que maneira”. E a ação de andar só se torna possível com o rompimento dessa dúvida e da fragmentação. O impulso interior nasce na situação-limite, em plena situação de dúvida e fragmentação. O possível se ativa quando, por um instante, há o abandono de si mesmo. O movimento que nasce da existência e o mecanismo do corpo com que depara nesse instante tornam-se o primeiro passo da dança, o que confirma a existência do fenômeno físico da ação que nasce das situações-limite.

Ao deparar com essa situação e tomar consciência dela, é possível perceber que no momento do abandono de si mesmo chega-se perto do corpo que “se torna”. E, também, direcionando as imagens por meio de palavras e da força da imaginação, vislumbram-se as formas e maneiras de trabalhar com o corpo.

O passo de dança, pendurado, levantado, desmontado. Uma figura em pé, com todas as suas forças, sustentada apenas por um pilar em cinzas, que sopradas pelo vento vão pelos ares a lugares inimagináveis. O vôo livre pelo espaço transforma-se no caminhar da dança.

O instante que abraça infinitas condições.

O instante que abraça infinitas mudanças.

O físico-corpóreo em “trans-formação”.

O corpo que transforma o espaço.

Faz-se aqui presente.

(*) Este texto A idéia do físico-corpóreo em transformação de Felicia Megumi OGAWA e Takao KUSUNO foi publicado no livro Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento organizado por Maria MOMMENSOHN & Paulo PETRELLA pela Summus Editorial, 2006 – direitos reservados.