A Quimera de Takao e a utopia do Tamanduá
A Quimera é animal mitológico, fantástico, que habita as regiões mais escuras da alma humana. Apesar da aparência monstruosa, todavia, não é um monstro nem opera movido pelas forças do Mal. Pelo contrário, tenta organizar o caos interior do seu ambiente gerando utopias. E as utopias fazem o homem mover-se aos novos horizontes do mundo.
O butoh é linguagem quimérica desde que nasceu nas trevas e das trevas fez seu habitat. Nele, o corpo não é outra coisa senão um receptor-emissor de energia. Recusa-se às convenções da Beleza, tais como são cultivadas no Ocidente. Alimenta o fluxo de energia com Imagens primitivas e emoções primárias, oriundas do plano arquetípico, do pensamento arcaico. E como essas Imagens e emoções ocorrem em fluxos, vão deslindando paisagens do Inconsciente, as quais todo mundo conhece através dos sonhos. Ou dos pesadelos. O que faz do butoh manifestação onírica, carregada de significados ao mesmo tempo muito simples (as Imagens do Inconsciente são concretas) e herméticos.
A Quimera de Takao Kusuno tomou forma e autonomia no nascedouro do butoh, no ambiente e em estreita colaboração com os mestres fundadores, Hijikata e Kazuo Ohno. Bebeu ali não apenas uma técnica e alguns recursos, mas toda a ideologia. Rigorosa consciência ecológica sustenta essa ideologia, que se bate pela preservação da vida e do homem, da memória e do meio ambiente. São as quimeras constitutivas da utopia que se revela no trabalho desenvolvido por Takao Kusuno no Brasil, desde quando aqui aportou em 1977.
No underground da nossa cultura, nela mergulhando através da alma de dançarinos-atores, fez o poema-manifesto O Olho do Tamanduá. Com várias etnias representando no palco as muitas etnias que se mesclam na formação multirracial do país o índio, o negro, o europeu, o oriental viajou pela memória da nação, longe de qualquer didatismo historicista. Buscou com seus dançarinos-atores paisagens da alma brasileira, buscou entender essa identidade multifacetada na sua unidade poética. Nem tanto pelo expressivo êxito do espetáculo no Brasil e no Exterior, que lhe valeu aqui e lá importantes prêmios, mas por terem os dançarinos-atores adotado as utopias geradas pelas quimeras de Takao, o grupo tornou o Tamanduá seu patrono. E com amor os integrantes da Cia.Tamanduá de Dança-Teatro acompanharam Takao Kusuno nessa nova viagem, que parece um regresso ao plano das trevas onde a Quimera se manifesta e se expande perpetuamente.
Quimera o anjo vai voando é o resultado das trajetórias percorridas entre as quimeras de Takao e a utopia do Tamanduá. O porto de chegada é também o de partida: o butoh. Que surge impregnado da experiência brasileira de Takao, colorido pelas contradições da cultura brasileira, embora se referindo ao Homem e ao necessário recolhimento humano em face da Morte. Um hospital. Doentes terminais e seus sonhos irrealizados, suas quimeras. Este é o universo evocado. Almas estagiando no limbo, movidas pelos sonhos que poderiam ter sido suas realidades terrenas e que se materializam na fronteira indefinida entre vida e morte. A dor transformada em arte pura pela imaginação poética de Takao Kusuno e pela entrega apaixonada (paixão feita de disciplina, inteligência e muito amor) dos seus jovens dançarinos-atores. Estes, sobretudo, oferecem emocionante carga energética, livre da poluição de idéias-feitas e conceitos óbvios que contamina nossos palcos. Com verdadeira humildade, sem egoísmos bobos, constroem o luminoso poema falando da condição humana, lançando o olhar amoroso e esperançoso sobre o homem, este ser tão frágil movido por grandes sonhos.
A obra de arte não se fecha em interpretações definitivas. Quimera o anjo vai voando pode ser lida e interpretada por diferentes ângulos, pode ser uma reflexão sobre a Morte como pode ser metáfora de situações contemporâneas. Mas será, em qualquer caso, a expressão da utopia de artistas que fazem do corpo instrumento para investigar a alma. E o fazem não por vaidade ou por amor à forma, mas para sentir o pulsar da vida nas pulsações do caos contemporâneo.
Sebastião Milaré
Crítico e Teórico
Estudioso da obra de Antunes Filho