Emilie Sesc Paulista

Foi Carmen Miranda

“Quero fazer uma paráfrase à obra de Kazuo Ohno com a figura da Carmen Miranda”, assim me propôs Antunes Filho em fins de 2004, para integrar o elenco do espetáculo Foi Carmen Miranda, uma homenagem à Kazuo Ohno em seu centésimo aniversário, que realizaríamos em 2005 na cidade de Yokohama no Japão.

Kazuo Ohno foi um dos pilares fundadores do butoh, veio a falecer aos 103 anos em 2010. Admirando La Argentina considerada sua grande obra-prima, foi inspirada na dançarina de flamenco La Argentina quando a viu dançando no Teatro Imperial em Tokyo em 1929. Cinqüenta anos mais tarde a louvaria em cena transfigurando-se nela. Antonia Mercé Y Luque era o nome verdadeiro dela, adotou este pseudônimo como homenagem a Argentina onde viveu.

A partir do convite de Antunes pensei em como me transfigurar em Carmen Miranda, dançar sua dança e ser butoh. Carmen Miranda era cantora, criou um modo próprio de interpretar suas canções com o corpo, trejeitos, gestos, figurinos, turbantes, colares, sapatos plataforma, tudo isto era sua marca.

A mim foi confiada uma grande responsabilidade. O elenco era composto por um quarteto de mulheres: as atrizes Juliana Galdino (o Malandro), Arieta Correa (a Passista), Paula Arruda (a Menina) e eu. Imprimiríamos nossos DNAS nesta criação. Antunes Filho criou a figura da Carmen sem rosto, como uma aparição, fantasmagórica, nada mais natural em se tratando de butoh. Eu tive outro desafio, fundir butoh e samba!

Nas primeiras temporadas de 2005 e 2006, o publico as resumiu em: “amei”, “odiei”, “não entendi nada”. Nesta primeira montagem, os tempos de cada cena eram radicais, como se fossemos enfrentar o publico e provocá-lo. Não era essa nossa intenção. Já na segunda montagem (2008 e 2009), com a entrada de Lee Thalor (o malandro) e Patricia Carvalho (a passista), o espetáculo amadurece, como tudo que tem longa vida. Os intérpretes imprimem um tom e ritmo próprios. Antunes cria, para a figura da Menina, uma cena contínua onde deve contar, em voz alta, cada passo que dá. Isso transforma o trabalho. O faz mais comunicativo com o público, criando mais empatia.

Mesmo assim Carmen continua fantasmagórica… E polêmica! Agora, em outubro de 2011, no Teatro Nelson Rodrigues (RJ), seis anos depois de nossa primeira apresentação aos cariocas, confesso que já não sentia receio da receptividade do público. “Foi Carmen” adquiriu vida própria, mesmo sofrendo nova substituição com Mariah Teixeira fazendo a Menina, continuou amadurecendo. É sempre um privilégio pertencer a espetáculos longevos. Sei que a cada nova montagem, aprimoramos o corpo, mesmo sofrendo os desgastes naturais, apuramos os gestos, melhoramos sua energia, seus sentidos. E isso é natural quando vontade e perseverança permanecem.

Outubro de 2011
Texto escrito para a terceira edição do jornal de arte e cultura “Qorpus” da Universidade Federal de Santa Catarina
http://qorpus.paginas.ufsc.br/

Depoimento de Emilie Sugai, um ano sem Antunes Filho (2020):

Depoimento de Emilie Sugai