O Poço Da Mulher Falcão – Emilie E Toshi Foto Danilo Cava147

O Poço da Mulher Falcão transculturando espaços e tempos

Como três países tão distintos se unem em tempos distantes? E quais são estas
espacialidades e temporalidades?
Comecemos pela resposta menos complexa…

A República da Irlanda nasce como um país independente em 1922, tendo contado com
escritores nacionalistas e políticos, como o próprio William Butler Yeats, nascido em
1865 e morto em 1939, e que embasam a tradição literária porque fica conhecida a terra
da mitologia celta e do personagem Cuchulain, um dos protagonistas da peça de
W.B.Yeats, encenada pela primeira vez em 1917, At the Hawk´s Well, traduzida no Brasil
por Maria Helena Peixoto Kopschitz, Terezinha Sarno de Vidal Chaves e Marcelo Tápia
em 1999.

O Japão, principalmente pelos tempos de reclusão do mundo ocidental, exerceu profundo
fascínio neste mesmo mundo, passando a ser crescentemente alvo da imaginação e do
escrutínio intelectual de vários escritores e artistas da anglofonia ao longo do século XIX – e não só.

Outros povos europeus e nas Américas também se moveram em curiosidade
e busca pelo conhecimento acerca do distante país que, pelas mãos de homens como
Ernest Fenollosa, Ezra Pound e o próprio W.B.Yeats, ganha formas, cores e imaginário
(novos?). Bem, se não novos, adaptados, recriados, transculturados… por maneiras que
permitiram ao grande público, fosse pela literatura e seus detalhes, fosse pelas encenações
nos palcos como o Abbey Theatre, ou nos salões das grandes exposições como as famosas
de Londres e Paris, conhecer e igualmente se fascinar pelo “exótico”, misterioso, distante
país…

O Brasil, como primeira nação com maior número de japoneses no mundo fora do Japão,
estabelece vínculos culturais únicos com o país do sol nascente, seja pelas práticas
culturais adaptadas à geografia tropical, seja pelas ricas traduções e adaptações da cena
literária, artística e cultural do Japão ao universo local ao longo das décadas… Das
traduções diretas e indiretas de textos os mais variados, originados no Japão, dos bairros
e “guetos” nipônicos recriados, o solo da terra vermelha (“terra rossa”, como foi assim
chamado o solo em que muitos imigrantes japoneses trabalharam, por influência da
imigração italiana) é fértil e abarca produções as mais variadas. A segunda metade do
século XX assistiu a um crescimento nos estudos japoneses e no interesse formal pela
compreensão dos mundos que se cruzam, traduzem-se recriando realidades… Não foi
diferente com a cultura irlandesa que viu nascer aqui e prosperar a Associação de Estudos
Irlandeses no Brasil, cujo um dos fundadores foi precisamente aquele que muito se
voltaria ao Oriente e ao Japão, Haroldo de Campos. A expansão do interesse dos estudos
irlandeses levou à criação, inclusive, da Cátedra W.B.Yeats na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo…

Mas, voltando as perguntas do início deste texto, vamos à segunda resposta…
A proposta d´O Poço da Mulher Falcão, dirigida por Emilie Sugai e Fabio Mazzoni,
como parte da residência artística provida pelo Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do
SESC, em cartaz até 29/02 no SESC Consolação, mas já com ingressos esgotados, é uma
adaptação à dança da peça do W.B.Yeats superando a confluência nipônica no teatro
irlandês, de modo a confundir a audiência mais leiga. Isto significa que se Yeats propunha
um entrelaçamento das culturas, uma sobreposição dos recursos cênicos do Nō no teatro
ocidental, particularmente, irlandês, essa proposta avança e ultrapassa quaisquer
deficiências tradutórias ou adaptativas pela técnica ultra refinada dos dançarinos.

Vale ressaltar que E. Sugai tem referências da dança Butō que aprendera com Takao
Kusuno. E Toshi Tanaka, do teatro Nō, que estudara no Japão. No entanto, as encenações
de ambos conjuntamente carregam as (re)significações tanto da dança, quanto do teatro,
uma dança-teatro. Ambos, Sugai e Tanaka, nipônicos habitantes paulistanos, com
experiências de vida híbridas.

É assim que a polifonia estabelecida entre as falas cantadas ao estilo Nō por meio das
grossas vozes de T. Tanaka em língua japonesa, em diálogo com a oralidade em português
do interlocutor Cuchulain, e os gorjeios femininos da guardiã-mulher que se torna falcão,
bem como de outros intérpretes, ora suaves ora mais fortes comovem uma audiência, em
geral, pouco familiarizada com hibridismos cênicos em meio ao jogo de luz, alusão ao
livro Em Louvor da Sombra (1933) do escritor Junichiro Tanizaki.

Importa notarmos que o olhar, de cuja luz depende a visualidade, sofre um impacto: no
início, a completa escuridão e depois, uma penumbra que perdura por longo tempo. Aos
poucos, a íris vai se acomodando ao jogo (de menos) luz, de modo que alguns vultos
começam a se esboçar, na fronteira entre o visível e o invisível, quando experienciamos
o Ma, o que pode ser perturbador a alguns. Não apenas da fronteira entre o visível e o
invisível se constitui o Ma em cena, mas também, no silêncio e na não ação, ambos
potenciais, porque intensificam a percepção do mínimo gesto, das mínimas vozes, os
gemidos que, no clímax, estouram em um forte canto de pássaros e animais, em dança
frenética.

Ademais, o cenário, a iluminação e o figurino tendem ao mínimo essencial. Nada se
encontra em excesso, mas os movimentos trazem transformações inesperadas: uma
figura, de repente, torna-se um gigante, uma pena se mostra como asa do pássaro e um
pote de incenso, objeto deixado no final do espetáculo no palco, é metonímia do poço.
Some-se à descrita riqueza da adaptação à dança da peça em versos de W.B.Yeats, o ritmo
é câmera-lenta, como no Nō, e também tão presente na cinematografia japonesa, como o
Drive my car do diretor Ryūsuke Hamaguchi, que conquistou o Prêmio de Melhor Filme
Estrangeiro no Oscar de 2022.

O que é oriental, o que é ocidental? O que de oriental ficou no Ocidente e o que de
ocidental resta após tanto Oriente? Já são perguntas para além das duas propostas acima
e merecem ensaios longos, trabalhos acadêmicos aprofundados… Aqui só nos resta alertar
que entre a escuridão e a penumbra, a atmosfera do forte aroma de incenso que reproduz
a névoa irlandesa, causando impacto não apenas no olfato, mas também na visualidade
de uma plateia já confusa, entrelaçam-se os movimentos transculturais dos dançarinos
tradutores/traidores, constituindo-se em espaços-entre… o que desconhecemos, o que
pensamos conhecer e julgamos reconhecer… Ação, reação, transposição… a música virou
dança que se transformou em luz na sombra da toada desconhecida…

Por fim, quem ainda não entendeu como se unem três países tão distintos em tempos
distantes, aqui vai a dica:

na ânsia pela resposta à eternidade, nos modos com que essa busca se desvela e na
convergência dramática e adaptativa.

Michiko Okano
Gisele Wolkoff


Michiko Okano é professora associada de História da Arte da Ásia da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp). Coordenadora do Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) e autora do livro
Ma: entre-espaço da arte e comunicação no Japão (2011), dentre outros. Atualmente pesquisa a
arte japonesa produzida no âmbito das inter-relações geográficas.

Gisele Wolkoff é escritora, tradutora e professora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Federal Fluminense (UFF). No GEAA, é responsável pelo projeto Arte Japonesa:
Espacialidades, Temporalidades e Inter-relações. É pesquisadora da Cátedra W. B. Yeats da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).