JC86998

Sobre a criação do Intimidade das Imagens

Considero essencial o contato com o espectador comum, pois o modo de dançar nesta perspectiva não é usual e poucos tiveram acesso a esta linguagem artística. É próprio da dança-butô causar certo estranhamento e introspecção, mas convida a platéia a refletir sobre sua existência. É um convite ao espectador para repensar seu próprio cotidiano.

No mundo contemporâneo poucas vezes somos levados a estes estados: de reflexão e emoção concomitantes. O hábito urbano das “coisas prontas”, do imediatismo bem como da beleza fácil pode ser criticado por meio da Arte. Este é um dos meus propósitos: buscar comunicação e troca e tentar o acontecimento epifano – não no sentido religioso, mas antes, como um trabalho simbolicamente revelador.

Então não é ao acaso que escolhi o tema “espelho”. Num momento onde o culto ao corpo e à beleza padronizada são valores fortes. Proponho uma maneira singular de olhar-se no espelho, na medida em que a pesquisa corporal, nesta linha de trabalho, convida o dançarino a habitar o próprio corpo, que é único, fazendo contraponto à imagem coletiva de um tipo de espelho padrão que mostra um só rosto.

Para o jogo de espelhamento e dos diálogos do corpo convidei a dançarina Cristina Salmistraro, italiana, radicada no Brasil há 10 anos, a dividir comigo as investigações corporais, improvisações e pesquisa com objetos cênicos em encontros iniciados em meados de agosto de 2005. Cristina tem formação nas técnicas da dança contemporânea e estudos do Kototama (alma dos sons) – uma pesquisa do corpo e os ritmos vitais representados pelos sons – introduzido pelo seu mestre J. Akihiko Tavernier na França. Em comum, treinamos as artes marciais do Kendô (arte da espada de bambu), cujo princípio básico é o encontro em uníssono do movimento, da voz (respiração) e da espada.

Movimento e não-movimento, tensão e relaxamento, o conceito oriental de tempo-espaço, o tempo suspenso, o tempo dilatado, treino das imagens, determinadas posturas que modificam a tensão muscular e faz o dançarino atingir estados de maior densidade rompendo com o cotidiano pequeno de nossas vidas, exercícios que levam o dançarino a transgredir seus limites físicos e mentais são noções que carrego comigo para a sensibilização e preparação do corpo para a dança.

Em nossas investigações confrontamos o espelho da maneira como é visto no mundo ocidental como mero reprodutor de formas, à maneira oriental. Sob esta perspectiva o espelho está dentro do corpo e tem o intuito de captar a imagem e deixá-la transparecer no corpo através de sensações, gerando movimentos genuínos. “Se dentro de nós há algo para se conhecer, este algo é parecido com o silencio. Aí tudo deixa de ser uma simples aparência e o corpo reencontra o antigo e o desconhecido”, diz Cristina Salmistraro.

“A cenografia foi constituída a partir das necessidades surgidas das improvisações e cenas. É quase uma anti-cenografia, formada pelos elementos que as dançarinas usam. Um espaço neutro, no qual a única construção é a substituição das cortinas de veludo da “caixa preta” de cena por outra, cenográfica, feita de papel, espaço neutro, mas pleno de sugestões. Uma gruta, espécie de lugar primitivo e acolhedor, ao mesmo tempo bruto e suave, no qual se desenvolve a ação. A espacialidade é o elemento mais forte deste cenário.” (Ulisses Cohn).

“O projeto de iluminação baseou-se desde o primeiro ensaio: delicadeza e vigor, beleza e deformidade, harmonia e caos. A luz do espetáculo busca esta duplicidade: toda imagem está sujeita a diferentes interpretações, pontos de vista. Para não reduzir esta possibilidade a luz é construída a cada nova montagem, em busca de seu íntimo.” (André Boll).

Convidei Marilda Alface para fazer uma assistência, um olhar externo, uma vez que estar dentro e fora do trabalho é tarefa difícil de ser realizada. Segundo Marilda, “fazer este “olhar de fora”, como disse Emilie, sensivelmente, está sendo muito mais que um simples trabalho. É o resgate de momentos únicos com Takao, Denilto, Felicia… shiro-san… E é através do olhar dessas íntimas imagens que vejo a continuidade da obra de Takao Kusuno. Sinto-me presenteada.”