Relato de uma viagem
O momento em que eu vivia na época não era dos mais favoráveis, primeiro o diretor Takao com o qual convivi, estudei e realizei vários trabalhos havia recém-falecido, questão de um ano. Segundo, tão logo realizava meus primeiros solos, memórias do corpo, colocava no palco experiências, agora sob minhas próprias escolhas, o que me deixava bastante insegura. Terceiro, ao mesmo tempo, tentava novas parcerias. Os amigos próximos estavam por aí e torciam para que eu pudesse crescer, registrar e divulgar uma herança tão preciosa. Não podia imaginar onde tudo isto ia dar, pois me encontrava num grande luto: perder um mestre e ter que seguir um solitário e árduo caminho, porém feito de beleza e poesia. Uma das parcerias que tentei foi a convivência com uma dançarina, uma tentativa que não deu frutos, mesmo tendo apoio de um grande diretor a nosso favor. Porém deste encontro nasceu um impulso nosso, cada qual aplicou um projeto para concorrer às bolsas oferecidas pela Unesco. Então apliquei um projeto para o Senegal. Detalhe: fizemos isto sem pretensões, mal sabia que o meu projeto seria aprovado seis meses mais tarde. Eu estava para estrear o solo TABI, que em japonês significa viagem, uma jornada no tempo em busca das memórias contidas num corpo que tem “sangue japonês”, como dizia insistentemente meu diretor, cheio de contradições por ter nascido no Brasil. Afinal sou japonesa ou brasileira? Todo meu estudo estava orientado para o Japão antigo de meus avôs, sem falar no que absorvi com Takao em suas criações de dança, representava sempre a mulher japonesa, um corpo contido tanto em expressão como em emoção. Simplesmente eu estava impregnada de orientalismos até o fio de cabelo. Que idéia mais esdrúxula aplicar uma bolsa na áfrica! Já havia pleiteado uma para o Japão sem sucesso. Eu até tinha a carta de aceite de Kazuo Ohno, o mestre dos mestres, para ficar em seu estúdio no Japão, que dizia mais ou menos assim: se meu pedido era verdadeiro e estava disposta a dar minha vida eu era bem-vinda. Veja só, meus olhos que sempre se voltaram ao Japão dos meus sonhos e sonho também de meu diretor, o que é que eu iria fazer no Senegal?! O que nós fazemos com nosso destino? Quando recebi por email uma mensagem do diretor Gerard do espaço Sobo-Bade em Toubab Dialao, Senegal, dizendo as boas novas, demorei uma semana em respondê-la. Tal era a paralisia que me encontrava pela novidade. Seria a primeira vez que conduziria um grupo de dançarinos e percussionistas tradicionais senegaleses num ateliê de dança com o agravante de outra língua e cultura até então desconhecida por mim. Na medida do possível ia tentando administrar minha ansiedade. Tudo era tão novo e creio que fazemos isto conosco, nos atiramos ao desconhecido quando não temos mais nada a perder. Uma serie de circunstancias me ajudou a conduzir bem uma viagem tão precária, marinheira de primeira viagem. Sim, eu pensava que o universo conspira a nosso favor, deixando-me levar às correntezas de um rio sem lugar para me segurar. E tudo parece tão inconsciente! Então o que seria uma jornada para as memórias do corpo japonês, contido e controlado, passou a ser uma viagem real para o Senegal. Sentia-me como se estivesse sido lançada no meio da áfrica negra para meu espanto. Mas para o deles também. O que? Uma brasileira japonesa? Como assim? Os ritmos africanos foram contagiando o meu corpo e sua maneira de ser. Assim a emoção que foi estancada tal qual um dique que vai transbordando, só se revelou um ano depois a partir do momento em que criei o trabalho seguinte com o nome de TOTEM. Para mim o totem foi durante muito tempo este dique que se abriu liberando toda emoção guardada.