Foi Carmen Julio Romero 05

Repercussão de Foi Carmen: A Carmen de Antunes

Repercussão de Foi Carmen: A Carmen de Antunes

Nirton Venâncio

O sempre inventivo diretor teatral Antunes Filho pega Carmen Miranda e a coloca no palco pra dançar com seus banlangadãs no ritmo inspirado no universo Budô japonês. E dá certo.

A peça “Foi Carmen”, que abriu ontem o Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, na Sala Martins Penna, é um exemplo de ousadia e criatividade. Antunes mescla duas culturas completamente opostas que convergem num mesmo espaço, numa mesma gramática de teatro-dança, de gestualidades que refletem e descontroem. Ao mesmo tempo que homenageia a figura mítica de Carmen Miranda, referencia o mestre coreógrafo Kazuo Ohno, que junto com Tatsumi Hijikata, revolucionou a dança que surgiu no Japão pós-guerra.

Na peça de Antunes, nossa Carmen Miranda não é biografada no palco: ela é grafada em cena com o minimalismo do imaginário dos personagens, uma menina que sonha ser artista, um malandro fanático, uma passista… e a plateia.

Adeilton Lima

Bela abertura do Cena Contemporânea 2012, ontem, na sala Martins Pena. Em “Foi Carmen”, Antunes Filho abandona a imagem para chegar ao espírito de Carmem Miranda! Um ritual com a poesia matematicamente construída no espaço onde os elementos que compõem a figura de uma das grandes rainhas do rádio lembram ex-votos de saudação aos deuses e deusas do teatro, da música e da cultura brasileira. A dramaturgia corre em outro plano, noutras línguas, noutras vozes e o butô encontra o candomblé e o samba na mesma harmonia dos movimentos e gestos de Carmen e de Kazuo Ohno. O sagrado está em em cena, Carmen sacra, Carmen profana, Carmen humana. Carmen!

Wilson Granja

Já fui esperando ver algo de vanguarda, calcado na pesquisa do trabalho de ator, de criação e interpretação e o palco nu já dava sinal de que seria realmente o foco. O início do espetáculo me incomodou um pouco, pela dilatação com que os primeiros “números” aconteciam. Depois da repetição quase excessiva da colegial em sua brincadeira dos passos contados, montando o cenário para a cena, ver quatro atores no palco, imóveis, durante a execução inteira de uma música de Carmen Miranda, me parecia demais. E depois veio outra música inteira e só a colegial se movimentava, de uma forma que parecia primária, uma exercício cênico. Mas ela prendia a minha atenção, com sua singeleza. Daí começaram a surgir as outras figuras e as outras cenas. Mais exercícios cênicos? Bem, se forem encarados assim, para mim não há problema algum. Quem dera eu pudesse presenciar exercícios como aqueles com mais frequência. Uma Carmen mórbida, com uma máscara preta, butô de verdade, que inspira a mesma sensação que a morte traz. Um apresentador estrangeiro que fala numa linguagem interessantíssima, construída pelo grupo Macunaíma – me deu muita vontade de aprender fonemol, devo confessar – e se faz entender pela plateia, cativa e arranca risos e até alguns aplausos esparsos dos mais empolgados. E depois ele se transforma, num andar consciente e belo pelo palco vazio, num malandro carioca que me remeteu a Michael Jackson (pode me chamar de doido, não tenho problemas com isso). E a colegial continua entrando e saindo e contando passos. E vem a Carmen cara-preta mais uma vez e me infunde agonia e medo com seu ritual macabro de espalhamento de tudo que a baiana tem: balangandãs, pano da costa, bananas, saltos plataformas lindíssimos e até um quase despacho num canto da cena, com direito a uma miniatura de Carmen. Emilie Sugai sai de cena e fica Lee Thalor, que acompanhara o final do ritual. Ele visita todos os elementos e depois se dirige ao baú, que me remetia ao mesmo do Festim Diabólico de Hitchcock. Sairia um corpo dali? Quase isso. Saiu mais uma boneca Carme Miranda, com quem o ator dançou. Saiu um álbum e alguns LPs! Achei lindo quando ele encostou o LP ao ouvido e a música “surgiu”. E depois ele calçou as tamancas e carregou para fora o baú, revelando uma Carmen humana que estava ali atrás há algum tempo, sem que nós víssemos. E ela vai se levantando, para minha surpresa, como uma pomba-gira. Claro! Como eu nunca fiz essa relação antes… Carmen é a própria! A atriz usa joelheiras – particularidade que não interfere na cena, mas sim mostra o cuidado do grupo com o corpo, que é um dos focos do trabalho daquele coletivo. A pomba-gira vai se transformando então numa sambista, uma Carmen feliz no Carnaval. Ela busca um parceiro, mas ele não corresponde. Ela insiste e ele continua rejeitando-a. Mais uma vez, a cena me levou a um lugar inesperado. Carmen, de fato, foi uma mulher que sempre foi vista exibindo um largo sorriso, mas carregava depressão e rejeição, falta de amor por dentro. Doeu que me levou às lágrimas. O homem então entra na dança, tarde demais, ela já tinha partido. “Todo carnaval tem seu fim”. A colegial retorna à cena, se espanta com todos aqueles elementos que não estavam ali antes, mas continua a sua brincadeira dos passos. Agora ela é porta-bandeira e homenageia a portuguesa mais brasileira de todos os tempos. E fim. Com certeza, Carmen Miranda, Kazuo Ohno e Michael Jackson (ao menos pra mim) devem ter se sentido honradíssimos com esse tributo tão precioso.

(escrito ao som de uma coletânea de Carmen – curiosamente finalizado enquanto tocava “O que é que a baiana tem”)

Opinião
Tullio Guimarães

Ontem assisti ao espetáculo dirigido por Antunes Filho com o grupo Macunaíma sobre Carmem Miranda incluso na programação do Cena Contemporânea. É incontestável que Antunes do alto de seus muitos anos continua no topo da vanguarda, sua capacidade de desconstruir um mito, sintetizando o exotismo ligado à imagem da genial interprete em signos bem simples, provocando em nós Brasileiros o olhar com o estranhamento de quem pertence a outra cultura e a vê de fora com direito a uma leitura distanciada, como a que tiveram os americanos quando a viram, é absolutamente genial! É claro que não se pode agradar a Gregos e Troianos, e muita gente nitidamente se incomodou, detestou e não entendeu nada, principalmente aqueles que esperavam ver frufrus e balangandans, clichê de clichê de musical falabeliano, esses saíram frustrados. Viva Antunes e sua constante inquietude, renovando a linguagem no mesmo patamar de Bob Wilson e Peter Brook. Parabéns ao Cena, ao Guilherme por nos dar a oportunidade de conferir.