Carta a Menina
São Paulo 27 de março de 2021
Querida Rita,
Sempre me lembro da gente:
Duas meninas de 5 anos brincando no quintal, de dançar. Foi nesta brincadeira que encontrei a dança a primeira vez e com ela a potência do que isso me causava. Um movimento ingênuo e espontâneo, mas uma imediata mudança de estado corporal. Uma espécie de epifania que encontrei de forma intuitiva.
Como as palavras não saiam de minha boca, elas atravessavam meu corpo, um tanto carregada de energia e intensidades.
Considero minha primeira performance em 1970, com você.
Anos depois fui redescoberta por um professor bailarino Armando Duarte da Cia. Cisne Negro. Foi num evento de final de ano, ao dançar sua coreografia de jazz moderno. Já tinha meus 14 anos. Uma transformação completa ocorreu. Não era a garota tímida aquela que dançava.
Daí ganhei uma bolsa do próprio Estúdio Cisne Negro para fazer ballet clássico no método da Royal Academy. Bem, era uma possibilidade de me tornar profissional na dança. Só que teve um detalhe: o meu corpo não cabia nessa forma. Não me sentia realizada.
Vou pular vários anos de minha vida em que fiquei procurando perdida. Agora adulta, em 1991, com 26 anos tive a sorte de encontrar a minha verdadeira forma de expressão: a dança butô. Na época não sabia o que era butô. Tinha sido acolhida pelo diretor japonês Takao Kusuno com sua esposa e parceira de criação a nipo-brasileira Felicia Ogawa e junto deles o dançarino-criador Denilto Gomes. Era como uma família de artistas que havia me juntado.
Eles eram importantes na cena da dança contemporânea. O Takao veio ao Brasil nos anos 70 e com ele trouxe o butô nas criações que fez junto de bailarinos brasileiros. Ele foi muito premiado pelos seus espetáculos.
Rita, mergulhei nas criações e experimentações destes mestres, aprendendo a doar o corpo às últimas energias, buscando, assim, suas transformações. Takao como diretor e o Denilto era aquele que levava o corpo a poesia e se entregava ao rito.
Quando Denilto faleceu, queríamos homenageá-lo e acabamos criando o espetáculo O Olho do Tamanduá em 1995 de concepção de Takao e Felicia e com isso a criação da Cia. Tamanduá de Dança Teatro. Esse trabalho foi inspirado nos mitos e ritos do povo Xavante. Um espetáculo importante que participou de muitos festivais internacionais.
Vou pular agora para o ano de 2001, ano em que Takao faleceu, a Felicia já tinha ido 4 anos antes. Passei a criar sozinha. Alguns solos, outros em grupos, convidando artistas que atravessaram meu caminho. A questão da vida e da morte, do renascimento permeando as criações. A menina, a garota, a mulher, a velha presentes na minha dança. E os presentes, e os ausentes.
Na dança butô, como um livro em branco ainda por ser escrito, buscamos nossas memórias individuais, somadas às memorias coletivas e ancestrais. E aí me lembro da imagem da folha de papel em branco, dos escritos de um poeta, monge zen-budista, vietnamita, Thich Nhat Hahn que disse: pergunte ao papel suas histórias. E o papel responde: vá falar com a flor, a nuvem e a árvore e ouça o que elas têm a dizer. O papel em branco, ao contrário do que se pensa, é justamente cheio de histórias! Igual esta carta, Rita, que te escrevo!
Minha busca continuou intimamente. E aí entrou o Zen-Budismo em 2015. Hoje tenho uma mestra. É a Monja Coen. Rita, desde que encontrei o Zen-Budismo tenho uma outra compreensão sobre a morte.
Quero te contar como cheguei ao Zen-Budismo.
Um ano antes, em 2014, estava iniciando uma pesquisa criativa em dança junto com o Lee Taylor. Rita, este você conhece, né? Então, começamos a investigar a vida e obra da artista plástica Tomie Ohtake. O Lee foi o parceiro na direção deste trabalho.
Tomie Ohtake foi uma pintora japonesa naturalizada brasileira. Ela veio visitar o irmão no Brasil e por conta da Segunda Guerra Mundial ficou impedida de retornar!
A Tomie criou suas raízes aqui. Descobri que a gestualidade presente nas curvas e linhas orgânicas de suas pinturas tem uma relação indireta com o Zen. O espetáculo de dança que só lançamos em 2021, chamou-se AKA. Em japonês significa vermelho. A cor preferida de Tomie. Ela é muito conhecida por suas grandes obras públicas. Lembra a obra do metrô Consolação?
Tomie é uma das grandes artistas que conseguiu tornar visível aquilo que é invisível. Foram inumeráveis obras primas que ela criou durante sua vida longeva!
Tem uma frase da Tomie que gosto muito, que diz: uma superfície branca a sua frente, seja de papel, seja de tecido, sempre olha para você com uma cara de desafio.
AKA só pôde ser concretizado em 2020 o ano desta pandemia. Um impasse e muitos desafios foram enfrentados. Tanto tempo levou e quando estava prestes para ser lançado veio esta crise sanitária mundial. O espetáculo foi filmado pelo cineasta Joel Pizzini. E não foi possível apresentar ao vivo…
Voltando agora ao Zen-Budismo. Cheguei lá por conta desta pesquisa criativa, buscando o significado de vazio. Me tornei praticante. Uma felicidade que em 2015 a convite da Monja Coen pude criar uma performance sobre os dez desenhos de domar o touro, do Mestre Zen-Budista Kakuan Shion Zenji, para o lançamento do livro O Monge e o Touro.
Quero te contar como criei essa performance. Nasceu durante as meditações sentada numa almofada olhando para uma parede em branco! Como forma de um koan. Koan é uma frase que é dada pela mestra para você sentar em meditação, praticar e perceber suas infinitas faces.
A procura é o encontro. Procure. Dentro e fora está a grande intimidade perdida. Assim fala a Monja em seus comentários neste livro. Aqui mais um trecho, no poema “ver as pegadas do touro”: mesmo nas profundezas das montanhas mais remotas, e quão distante possa vagar, suas fuças alcançam a imensidão do céu e nada o pode esconder.
Rita, quando a gente se encontrar te dou um exemplar do livro.
Hoje 51 anos depois. E a gente está vivendo um momento grave em nossas vidas! Esta tênue linha da vida-morte que nos assalta a pandemia.
E você, como está?
Um abraço, da Emilie
Carta a Menina
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